
Para a cineasta Camila de Moraes, o cinema é um lugar de expressão, reflexão e revolução. Influenciada desde cedo pelos pais artistas – filha da atriz Vera Lopes e do jornalista, poeta, roteirista e escritor Paulo Ricardo de Moraes – a refletir sobre questões sociais e raciais, o cinema se tornou uma ferramenta potente para a diretora gaúcha levar adiante os debates inquietantes. “Quando se faz uma obra e se lança para o mundo, ela vai muito rápido. O diálogo acessa um número muito maior além de dentro dos nossos grupos”, diz Camila.
Diretora do aclamado O Caso do Homem Errado, documentário que aborda a história de Júlio César, que foi morto pela Polícia Militar do Rio Grande do Sul ao ser confundido com um assaltante no ano de 1987 em Porto Alegre, Camila – que também é jornalista e graduanda no curso B.I. de Artes com concentração em audiovisual pela Universidade Federal da Bahia – encontrou no gênero um meio de iniciar uma conversa e entender a história do outro. “Precisamos conhecer a nossa história e o documentário nos ajuda nesta formulação. Porque quando a gente coloca uma câmera para escutar o outro, a gente faz um processo de escuta, de tentar entender o outro. Quando a gente para para ouvir a versão da história de alguém, tem uma empatia do outro lado. O documentário me fascina por isso”, explica.

Além do longa-metragem O Caso do Homem Errado, a jovem de 34 anos também dirigiu os curtas-metragens A Escrita do Seu Corpo, que trata sobre a questão de identidade racial e de gênero por meio da poesia, e Mãe Solo, realizado durante a pandemia, que conta a histórias de mulheres e mães pretas da comunidades da cidade de Salvador, através de relatos autorais de suas vivências, fugindo dos estereótipos que cercam as mulheres mães pretas solteiras. Mas foi com o Caso do Homem Errado que a carreira de Camila alavancou. O filme chegou a entrar na lista de pré-selecionados para representar o Brasil e concorrer ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019.
“Quando a gente tirou o projeto do papel, a gente tinha muita necessidade do diálogo de que vidas negras importam. Depois de produzir e exibir, a gente começou a analisar coisas mais profundas e começou a atuar para algumas mudanças. Foi um marco desde a sua estreia: teve circulação nacional de um filme independente, que está em duas plataformas de streamings no Brasil, disponível para 17 países da América Latina, na programação de um canal de TV, e os diálogos permanecem. Isso mostra o poder do nosso envolvimento e que muitas pessoas querem as mudanças que a gente acredita. Isso faz com que nos dê mais forças para continuar neste caminhar”, projeta Camila.
Pluralidades e responsabilidades
Além destas obras, Camila produziu e co-roteirizou o documentário Mãe de Gay, vencedor de dois Galgos de Ouro no Festival Universitário de Gramado. Ela também fez produção do curta-metragem de ficção Marcelina – com os olhos que a terra há de comer, de Alison Almeida, e assistência de produção do documentário Poesia Azeviche, de Ailton Pinheiro. Atualmente ela está desenvolvendo uma série de ficção chamada Nós Somos Pares que aborda a vida de seis mulheres negras e suas relações de amizade e amores. “Ela surge dessa necessidade de mostrar a pluralidade de mulheres negras. Que nem todas as pessoas negras estão dentro de uma caixa”, ressalta.
Ao colocar O Caso do Homem Errado em exibição nas salas de cinema, Camila se tornou a segunda diretora negra a colocar um filme em circuito comercial, sendo Adélia Sampaio a primeira mulher preta a realizar este marco em 1984, com o longa de ficção Amor Maldito. “É uma responsabilidade muito grande, porque envolve muitas questões, da gente ter que estar sempre ali dizendo que há algo estranho muito errado neste caminhar. Desde sempre houveram pessoas negras atuando no audiovisual. A gente pode continuar atuando nestes locais”, desabafa.
Pensando nisso, o Festival Cinema Negro em Ação surgiu justamente para dar luz a outros cineastas negros. O evento chega no seu segundo ano, integrando as programações do Cinquentenário do Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro), com filmes de realizadores negros de todos os estados brasileiros. “É um projeto que a gente acredita muito. É gratificante pensar em ações para mudar a estrutura onde a gente possa estar incluso, neste ambiente do audiovisual. São ações que precisam ter continuidade”, afirma a idealizadora e curadora do Festival que segue até o dia 27 de novembro em formato híbrido.

Dividido em quatro categorias – videoclipe, videoarte, curta-metragem e longa-metragem -, Camila destaca a diversidade de conteúdos selecionados para a edição deste ano: “a curadoria recebeu conteúdos diversos dentro da temática negra. Por mais que sejam realizadores negros produzindo, existe uma diversidade muito grande na linguagem e na forma como eles estão abordando os conteúdos. Tivemos muitos filmes abordando a temática LGBTQIA+ e esse é um ponto interessante de analisar e refletir”. A programação completa está disponível neste link.
Tendo como referência artistas como o ator gaúcho Sirmar Antunes, os cineastas Joel Zito Araújo, Jeferson De – homenageado do Festival Cinema Negro em Ação deste ano – e a estadunidense Ava DuVernay, Camila também busca inspiração dentro de casa. “Pessoas que estão do nosso lado, para mim, fazem toda a diferença neste caminhar”, conta. Por isso, a cineasta gaúcha, que reside há nove anos em Salvador, espera que o futuro do cinema brasileiro continue revolucionário nos seus debates. “A gente só consegue mudar quanto tem informação e o cinema é uma ferramenta de informação para nós. Espero que a gente consiga, mesmo em tempos difíceis, continuar atuante e reflexivo no cinema brasileiro.”
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