
Em cartaz nos cinemas, Rio Doce acompanha a jornada de um homem negro, periférico e nordestino em crise existencial após descoberta da identidade do pai biológico que nunca conheceu.
Dirigido por Fellipe Fernandes, o filme é o resultado de histórias que cresceram ao redor do cineasta e jornalista na periferia de Olinda, Região Metropolitana de Recife.
“Rio Doce surge de vários desejos cultivados ao longo dos anos, de investigar a maneira como as pessoas na periferia lidam com suas crises emocionais, questões psicológicas e a manutenção da sanidade numa rotina capaz de moer qualquer traço de identidade e onde há pouco espaço para reflexão e o autoconhecimento”, contou em entrevista exclusiva a Cine Looou.
Em Rio Doce, Tiago (Okado do Canal) é um jovem trabalhador que descobre a identidade do pai ausente, quando conhece as suas meias-irmãs, fato que o leva a questionar a sua própria identidade às vésperas de completar 28 anos. Nesse processo, ele fortalece laços afetivos, transformando assim sua forma de ser e de ver o mundo.
Ressignificações e representações
Marcando a sua estreia como diretor de um longa-metragem, Fernandes quis ressignificar a presença do homem negro e periférico tanto no cinema brasileiro quanto na mídia em Rio Doce: “Procuramos complexificar essa imagem e reverberar vozes, processos e questões que estão presentes na vida de tantos jovens como ele, mas que é tão pouco retratada com o compromisso necessário. E esse gesto, pensado com sensibilidade e cuidado, me parece necessário no jogo político que vivemos”.




Além disso, o filme também apresenta o protagonista repensando o seu papel como pai. “O filme ganha corpo quando se pensa em uma narrativa em torno da paternidade para costurar todos esses desejos, nos permitindo trabalhar os diversos diálogos possíveis entre a esfera íntima e a social, individual e estrutural, particular e universal”, disse.
Diante da realidade do mercado de cinema autoral no Brasil, mobilizar o público a assistir filmes como Rio Doce é um desafio enorme, principalmente após a pandemia e do fortalecimento dos streamings:
“Temos uma carência muito grande de nos vermos representados, pois a maior parte das representações populares da periferia não dão conta de nossa diversidade e complexidade. Então as pessoas se emocionam muito ao se enxergarem em Rio Doce. Por isso, a nossa expectativa é que a possibilidade de viver isso, de se reconhecer numa cinematografia, acabe levando às pessoas a escolherem o nosso filme na hora de ir ao cinema”.
“O cinema é capaz de mobilizar afetos”

O cineasta reconhece que o cinema sempre fez parte da sua vida, sendo a ferramenta necessária para lidar com o mundo e consigo mesmo.
“A escolha de fazer disso meu trabalho, no entanto, é uma opção que eu preciso fazer quase diariamente, e nem sempre ela é uma escolha simples diante do contexto social em que estou inserido”, contou relembrando de um episódio em que a sua mãe o alertou de que passaria fome se escolhesse trabalhar com cinema. Mas, como o próprio cita, ela, como outras mulheres periféricas, apenas o quis proteger das frustrações de desejar o impossível: uma carreira artística.
“Sinto que fazer cinema, longe das regras do mercado e valorizando a força e o potencial político e social das imagens, é algo que sempre está na iminência de ser ultrapassado, mas que não deixa nunca de ser necessário e potente. Não acho que um filme possa mudar o mundo. Mas acredito que ele é capaz de mobilizar afetos, desejos e sentidos. Fazer cinema, para mim, é um exercício constante de fé na experiência artística e no potencial transcendental da cultura”, relatou.
E assim como foi com Rio Doce, Fernandes pretende seguir a sua trajetória no cinema investigando pessoas e paisagens que lhe afetam para, assim, seguir complexificando as imagens desses sujeitos e desses espaços.
“Para que isso dê certo, espero construir um caminho positivo nessa eterna negociação entre o que esperam de mim enquanto artista e o que eu desejo entregar para o mundo. Assim, quem sabe, outras pessoas possam também percorrer esse mesmo caminho com mais facilidade”, concluiu.