
É possível observar uma forte tendência em documentários de artistas: a de controle da narrativa. Dificilmente, assistiremos uma produção independente que não tenha a contribuição e, acima de tudo, a aprovação do protagonista sobre a sua vida no audiovisual. E isso não é, necessariamente, um problema. Afinal, nada mais justo do que você ter o poder de decisão de como e o que vai contar da sua história depois de tantos anos tendo a imprensa e a opinião pública contando a versão deles e não dando o espaço suficiente para a contar a sua. É assim em Racionais: Das Ruas de São Paulo para o Mundo, filme dirigido por Juliana Vicente que trouxe à tona as vivências de Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock, em que relembram a sua trajetória até ascensão musical.
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O documentário é rico em conteúdo, material e humanidade. A diretora Juliana Vicente faz um trabalho criativo e consistente com tudo o que tinha em mãos, tirando o pó sobre o formato tradicional em que normalmente assistimos no gênero sob a liberdade poética das letras do grupo, fazendo da música um personagem do filme, ao mesmo tempo em que os depoimentos dos artistas ganham uma dinâmica descontraída, os reunindo em uma conversa entre amigos relembrando os seus melhores e os piores dias. Pode parecer simples, mas essas escolhas fazem a diferença quando é preciso reunir mais de 30 anos em um pouco mais de duas horas de filme. Juliana caprichou do início ao fim tornando a experiência prazerosa, fazendo com que a pauta do grupo seja imprimida pelo seu jeito firme de construir a narrativa destes quatro homens que influenciaram e mudaram a vida de muitas pessoas.
Uma história grandiosa
Mas a direção criativa de Vicente também se deve a grandiosidade da história dos Racionais. Mano Brown conduz boa parte do documentário, contando dos dias árduos na periferia de São Paulo, ao lado da mãe e dos amigos que foi conquistando ao longo da vida, entre eles os seus companheiros do grupo, até encontrar nas rimas um modo de aguentar a violência, o racismo e a pobreza nas ruas paulistas. E, foi assim que os Racionais foi tomando forma sem nem ao menos pretenderem se tornarem um dos maiores grupos de rap do Brasil. Começando nos bailes de black music até viajar o mundo, onde todos queriam ouvir atentamente as letras que denunciavam, expressavam e confessavam a vida de quem sobrevive “sob o olhar sanguinário do vigia“.
Os Racionais conquistaram os holofotes, a fama e o reconhecimento que mereciam, porém, nem mesmo esses “privilégios” de artistas foi possível de “livrá-los” de problemas com a polícia, com a violência nos shows e com os percalços do destino. Se por um lado, a potência que a banda estava ganhando mostrava que a mensagem que eles cantavam – abrindo a mente e os olhos do seu público alvo – estava chegando nos lugares certos, por outro lado, a proporção disso era indevida. Mano Brown se posiciona fortemente criticando que a música dos Racionais não é para playboy achar bacana. Afinal, a crítica das músicas era, justamente, contra o sistema que favorece o playboy, logo esse cara não entendeu nada do que é Os Racionais, já que canções dizem respeito para quem vivencia as dores e as lutas dos negros, dos pobres e de quem espera por dias melhores.
No rap tem coração
O filme Racionais: Das Ruas de São Paulo para o Mundo é uma aula sobre como fazer um documentário, de saber contar uma história com alma, de conseguir compartilhar que o rap foi a salvação para quem não tinha nada. A produção é a porta de entrada para quem não conhecia a dimensão da banda e da sua importância para a cultura de São Paulo e, claro, para a música brasileira. Afinal, a realidade das ruas deste país tão desigual está na discografia dos Racionais, está nas composições de Mano Brown, Ice Blue e Edi Rock e nas batidas de KL Jay, e, acima de tudo, está nas vozes de quem canta. Se Emicida brinca em Cananéia, Iguape e Ilha Comprida que “no rap não tem risadinha”, com os Racionais, o rap tem, acima de tudo, um coração pulsante e revolucionário.