
- Matéria escrita para o site do Correio do Povo e publicada em novembro de 2018.
A arte drag nunca esteve tão acessível. O cenário positivo vem da visibilidade que fenômenos da cultura pop como a cantora Pabllo Vittar e o programa RuPaul’s Drag Race proporcionaram nos últimos tempos. Pabllo, por exemplo, conquistou um posto ao qual nenhuma drag queen tinha chegado no cenário musical brasileiro e com isso, trouxe uma representatividade importante para as artistas drag queens no Brasil. Em Porto Alegre, a arte drag tem o seu espaço reservado, especialmente, em casas noturnas como o Vitraux – que deu início a cena drag na cidade – e o Workroom, o primeiro bar drag da Capital. Além de algumas festas que ocorrem esporadicamente como a MONA – que possui uma temática drag com apresentações de artistas locais – e a Xtravaganza – famosa por trazer uma participante do reality show RuPaul’s Drag Race.
O programa também popularizou a arte drag devido ao seu alcance mundial através da Netflix não só por ter meros espectadores, mas por inspirar o nascimento de novas artistas. Como foi o caso do professor de dança Gabriel Ribeiro que deu vida à drag queen Bibi Ribeiro. Natural de Rio Grande, ele sempre esteve ligado à dança e ao teatro, e conforme foi acompanhando o reality show, também mudou a sua percepção sobre a arte drag. “Eu assistia a shows de drags desde que era pequeno. Sempre admirei, mas nunca imaginei fazer. E foi assistindo a ‘RuPaul’s Drag Race’ que eu entendi drag queen como uma arte. Eu pensei ‘eles são meninos durante o dia, se montam, e depois voltam a ser o que são. Isso me fascinou e me motivou a começar a me montar”, recordou.

Inspirado em Pabllo Vittar, Bibi também apostou na sua carreira musical com dois singles lançados em 2018 – Aceita e Afeminada – onde busca levar mensagens como empoderamento e representatividade nas suas letras. “Eu nunca achei que era capaz. Acho que faltava alguém me indagar por que eu não tinha uma música. Então um amigo me sugeriu fazer uma e foi tudo muito rápido. Aconteceu de forma bem natural. Logo eu fiz a letra, um amigo fez a batida, outros amigos gravaram o clipe, e aí eu descobri uma nova paixão que é cantar funk”, disse. Bibi citou outras artistas drags que também tem firmado o seu espaço na música como Glória Groove e Lia Clark, cada uma com um disco lançado nas plataformas digitais.
Levantando a bandeira
Há um ano morando em Porto Alegre, Bibi faz parte do casting do Workroom, que possui um espaço fixo para apresentações semanais de 25 artistas drag. O local foi inspirado na temática do programa RuPaul’s Drag Race e conforme um dos proprietários, Rodrigo Krás Borges, também foi uma oportunidade de reacender o cenário drag em Porto Alegre. “As festas estavam perdendo força e era uma questão de necessidade ter um bar que levantasse a bandeira para que toda comunidade LGBTQ+ pudesse se sentir segura. Eu estava com muita vontade de empreender e eu queria trabalhar com esta responsabilidade social. Então veio muito a calhar todas estas ideias”, comentou Borges, que mantém o bar ao lado do sócio Gabriel Dreher Bittencourt.

Com a ajuda da queen Cassandra Calabouço, grande referência da arte drag em Porto Alegre, Rodrigo conseguiu unir nomes para montar um elenco para dar o pontapé inicial do Workroom. “Foi uma recepção muito positiva. Eu confesso que estava com um pouco de receio de abrir um drag bar em Porto Alegre, com toda esta cultura conservadora que a cidade tem, mas não sofremos, até hoje, nenhum tipo de preconceito. A gente chegou em nível nacional e estamos com uma marca bem consolidada para quem vai fechar dois anos em 2019”, contou Borges.
O que é Drag Queen?
Drag Queen já deixou de ter apenas uma definição e se tornou uma pluralidade de significados para cada pessoa. Ato político, manifestação artística, glamour, alter ego, resistência, são algumas das formas que os artistas e admiradores enxergam a arte. Para o publicitário Victor Gyurkovitz, foi através da sua drag queen Vitz Queen que conseguiu a aprender a se amar. “A arte drag me fez perceber que eu posso alcançar tantas pessoas com a mensagem do amor. É inspirar para que elas se permitam se olhar no espelho e entender o quão incrível são por serem simplesmente elas mesmas”, afirmou. “Arte drag deixou de ser algo de cunho de realização pessoal para se transformar numa armadura de batalha, uma arma para enfrentar este mundo tão preconceituoso. É o que eu uso para me expressar de forma artística e conseguir levar uma mensagem de aceitação”, acrescentou.

Arte drag deixou de ser algo de cunho de realização pessoal para se transformar numa armadura de batalha. Victor Gyurkovitz
Isomar Costa, de 21 anos, trabalha há dois profissionalmente como Isa Benett e, para ele, a arte drag é um reflexo da personalidade do seu criador. “Quando a gente está em drag, a não deixamos de ser a gente. Por mais que seja uma personagem, você está ali por trás de toda maquiagem”, disse. “Nós estamos colocando a nossa cara e o nosso corpo para que aquilo aconteça e que outras pessoas se inspirem e nos abracem. É o meu sonho e ele está sendo realizado. Se a Isa conseguiu, foi porque eu consegui.”
Vai ter mulher de drag!
E se a arte drag é reconhecida principalmente pela inversão de papéis, o mesmo acontece quando uma mulher assume a transformação para uma representatividade masculina. E esta é a essência do trabalho da artista visual e diretora criativa do Workroom, Julha Franz, que dá vida ao drag king Leon Rojas. “Drag é a arte de transformar o corpo mental e o físico. É pensar na transformação da maquiagem, no jeito de andar e de se vestir. Mas também no jeito de pensar e expressar coisas que a gente tem aqui dentro”, definiu.
Julha enxergou nesta arte também um modo de romper padrões estéticos. “Eu tenho esta vontade de falar de coisas que me instigam. No drag, eu vi possibilidade de questionar todos estes padrões de gênero e sexualidade. E aí comecei a experimentar maquiagens assistindo a tutoriais no Youtube em casa.”

Porém, a figura de um drag king às vezes não é tão bem visto, inclusive, dentro da comunidade LGBTQ+. “Já aconteceu de casos extremos até os simples olhares, que são as piores agressões por causa do julgamento. Tudo isso por ignorância. A gente tem que estar aberto as possibilidades e desapegar de padrões, de ver o drag só como drag queen. Porque julga as pessoas que estão no mesmo barco e isso acaba prejudicando”, lamentou Julha.
Ela é uma das poucas artistas mulheres de referência da arte drag no Brasil. “Não me orgulho nem um pouco de ser, acho, a única drag king que se apresenta e é chamada para coisas em Porto Alegre. Deveriam existir mais. Infelizmente, eu conheço no máximo umas quatro drag kings no Brasil com certa relevância e que conseguem estar no cenário. É bem complicado”, disse.
Drag é jeito de pensar e expressar coisas que a gente tem aqui dentro. Julha Franz
Para Gyurkovitz, a cena drag deveria ser muito mais forte com a inserção de mulheres no meio. “A arte drag bebe da fonte do universo feminino. Nós estamos fazendo uma apropriação e deixando tudo mais extravagante. Nós homens podemos ser drag queens e as mulheres mais do que nunca também podem ser. É importante pra que as pessoas se empoderem destes símbolos que as fragilizam.”
Drag é pop!
Por outro ponto, Julha alegra-se com a popularização que o cenário drag teve em Porto Alegre nos últimos tempos. Mesmo que seja por conta de um possível modismo, ela ressaltou a importância de se “enxergar” em diversos lugares pela cidade. “Aconteceu um fenômeno maravilhoso com o cenário drag, que era muito marginal, então muitos lugares mais ‘mainstream’ pegaram esta arte para ser uma validação delas. Validação que não precisava”, contou. “Então esta popularização ajudou que muita gente quisesse se montar, visse isto como uma carreira e isso é muito importante. Profissionalizou um pouco mais, então óbvio começou a crescer e a galera tem feito mais. Mas eu vejo como ondas, e isto deu uma baixada desde o ano passado”, complementou.
Para Costa, o sucesso do programa de RuPaul na televisão e de Pabllo Vittar na música ajudou para mudar a percepção das pessoas sobre a arte drag. “As pessoas não estão olhando mais com preconceito, mas com um olhar de curiosidade, para tirar foto ou conversar. RuPaul tem todo um legado e nos representa como drag. A Pabllo conseguiu algo por nós drags brasileiras, de nos sentirmos reconhecidas. As drags estão conquistando espaço e estão nos representando em reality show, na música, na televisão, e as pessoas estão sabendo que as drags estão ali trabalhando. E quem apenas se monta por diversão também merece respeito.”
De acordo com Gyurkovitz, uma nova geração de drag queens surgiram, há pelo menos um ano e meio, quando foi um ‘boom’ na cena local por causa da quantidade de festas temáticas drag em Porto Alegre. “Agora ficou morno a cena e estão ficando as pessoas que se identificaram com a arte e entende isso como uma forma de militância e representatividade na sociedade”, afirmou.
Drag como profissão
Atuante na cena drag porto-alegrense desde 2012, o publicitário Rafael Mello, mais conhecido como Sarah Vika, entende que o atual movimento da arte tem se mostrado positivo por causa de fenômenos midiáticos, mas na Capital, por causa do fechamento de muitas casas noturnas, a agenda tem diminuído para muitas artistas drag gaúchas. “Eu comecei a me montar na mesma época que meu amigo Pedro, que faz a Isis James-Preston, nós nunca nos deixamos abater pelas dificuldades, e que foram muitas e seguem sendo. Muitas vezes já parei para conversar com ele sobre se devia continuar ou não, até onde isto podia nos levar e mesmo com tudo isto, a gente achou que valia a pena seguir, porque a gente se realizava e ainda se realiza como drag.”

Quando começou a se montar, Rafael contou que dividia a sua vida entre a sua rotina numa agência publicitária e a Sarah Vika. Entretanto, graças ao seu trabalho como drag queen, ele conseguiu realizar o sonho de se dedicar apenas a um cargo. “Eu conheci e me apaixonei por maquiagem através da Sarah. Em 2017, aconteceram várias coisas legais para mim e há muito tempo queria largar a publicidade para trabalhar com isso. Mas eu posso dizer que atualmente eu trabalho só com drag e considero este último ano como uma vitória. É angustiante em alguns momentos, tem meses que é maravilhoso e outros que é mais apertado”, salientou.
Entre as conquistas que Rafael soma na sua jornada estão os cursos de maquiagem que promove, tanto em grupo quanto particulares, parceria com marcas e eventos, além das apresentações no Workroom e de fazer parte do time de embaixadores com a Sarah Vikka do Shopping Iguatemi. “Eu consegui sair da curva e circulo em ambientes onde a maioria das outras drags não circulam. Quando um shopping de classe A iria chamar uma drag para estar ali? No momento que eu consigo ser também embaixador do Cabify, que é uma empresa mundial, isso é super político”, disse.
Viver de arte é incerto porque não é um País que valoriza. Julha Franz
Para Julha, que se divide nos empregos de DJ e diretora criativa do Workroom, ser qualquer tipo de artista no Brasil é complicado. “Eu trabalho com várias áreas de arte e é difícil para mim. É incerto porque não é um País que valoriza. Por mais que tenha popularizado, muita gente tem pé atrás com a arte drag. Tem um caminho muito longo pela frente para isto ser realmente naturalizado.”
É a mesma situação de Gyurkovitz, que salientou que infelizmente não é possível viver apenas da arte drag. Ele realiza freelas na área da publicidade e também tem investido numa marca de roupas, já que adora costurar. Bibi Ribeiro é outro que possui um emprego fora da área drag, mas sem deixar a criatividade de lado. Ele é professor de dança na escola Reticências na zona Sul de Porto Alegre. Isomar também atua como modelo e DJ em festas noturnas.
Representatividade negra
A representatividade negra no cenário drag também é uma pauta a ser debatida em Porto Alegre. Costa salientou que já chamou atenção de produtores de festas e eventos sobre a falta de oportunidades para as drag queens negras. “Já questionei se eles não acham que as drags negras são tão qualificadas quanto as brancas. Porque elas não estão na mesma porcentagem que as ‘manas’ brancas. Então é bem triste você ver que está tendo um show e ver seis performances de drags queens e apenas uma ser negra”, lamentou.

“Eu sou um homem negro, uma drag queen negra e não me sinto representado em questão de raça. Tem muita ‘mana’ boa e elas merecem espaço. Sinto que a gente tem que abordar este tema para saber do por que isto estar acontecendo”, acrescentou.
Segundo Costa, é importante, inclusive, conceder a mesma liberdade criativa para as drag queens negras e não cair nos estereótipos. “A gente está ali lutando junto e não achamos que estamos na frente dos outros. Estamos defendendo a mesma coisa. Alguns contratantes vieram conversar, e era realmente o que eu queria, e disse que eles estão silenciando as vozes de algumas pessoas.”
Futuro do cenário drag
A resistência é a principal palavra que as drag queens colocaram como objetivo para o futuro. “Ser drag neste momento é mais do que estar na comissão de frente de uma luta. É tentar preservar e permitir que as próximas gerações possam usufruir de todas as conquistas que outras drag queens conquistaram para nós estarmos aqui. Entrou em jogo a gente poder preservar e manter tudo o que já foi conquistado”, enfatizou Victor.
O impacto visual da arte drag será o modo pelo qual Julha Franz, ou melhor, Leon Rojas, vai continuar mantendo na sua profissão. “Só de uma pessoa te olhar, ela vai ter uma série de coisas para refletir. O papel mais do que nunca é estar nos lugares e se afirmar.”
Ser drag queen é transformar toda a criatividade que a gente tem em uma força de mudança. Rafael Mello
“Seja quem você deseja ser”, além de ser uma frase inspiradora que move o bar Workroom, é a principal mensagem que Borges extraiu da sua admiração a arte drag. “A expressão de poder se permitir. Quando nosso cliente entrar no bar, a gente quer que ele seja ele. O mais importante é respeitar o outro.”
Para Bibi Ribeiro, apenas a existência de uma drag queen é um ato político. “Só o fato da gente estar ali parada é um acontecimento. A gente não pode andar para trás depois de tudo que a gente conquistou.”
Segundo Mello, o futuro da arte drag é reentender o papel dentro da sociedade. “Talvez nosso próximo papel seja o da infiltração. A gente tem que reaprender a coexistir e a questionar sem questionar. Enquanto eu estiver montada em ambientes onde as pessoas não esperam, eu vou estar. Ser drag queen é transformar toda a criatividade que a gente tem em uma força de mudança”, concluiu.